quinta-feira, janeiro 28, 2016

 Pensador

            Esta a história do pensador que admitia não conhecer os seus princípios,  mas saber que lhes obedecia. Um asceta, meditando à hora de Horus, deus das horas divinas e outras. Um espírito universal capaz de todas as religiões. São deuses egípcios que lhe assaltam as células a meio da tarde, a transmigração das almas, Empédocles lembrava-se de ter sido peixe e alga, sem dúvida possuidor de uma memória milenar!
            Apareceu como uma nebulosa nas catacumbas do espírito, metamorfose cascavel subindo o rio. Aparentemente tudo fazia ainda parte do sistema solar. Chegaram a dizer-lhe que se calasse, que estivesse quieto, mudo, que as aves ainda cantavam, mas que essa noite seria diferente. Não entraria por essa porta porque aberta. A delícia do desconhecido é uma porta fechada.
            O seu mundo é feito de esferas verdes, tanto quanto possível do seu amor à natureza, mesmo quando ela se trabalha de sol a sol. Corpo feito instrumento, carne queimada, tudo por um quinhão de existência, vida. Eles não querem de cultura, porque nunca ócio, nunca tédio, eles é que sabem do gosto de ser. Afinal são os donos das primeiras essências, que se o homem tivesse ficado a pensar tinha morrido à fome!
            Mas isso foi há mais de muitos anos. Nada mais que latidos na madrugada, saudade do silêncio, asfixia citadina em nebulosas sensações esféricas, qual cão teimando em apanhar o rabo. Maio, Maio azul ou parcial, rimoso, enlodoado como os seus dias.
            A razão inquisidora aprofunda os campos férteis do medo às instituições. Nisso havia lucro daquele fácil, de todo o tipo de colónias. A razão dos campos férteis do medo. Quantos desejaram nunca ter nascido... Uma balada do oeste, Bob cantava-a de coração, quando ainda havia coração para cantar baladas. A vida é feita de bocados. Quando trouxeram o enxota-moscas esqueceram o insecticida. Deitaram-se de manhã com as últimas estrelas, escreveram canções, pedreiraram ritmos, África, Artaud e os mexicanos, viajaram no gado, deitando laços. Que o importante era pensar em grande, mas nunca teria metade do Minheu.

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Miroslav



            É sempre qualquer coisa relacionada com folha branca e um primeiro encontro sonoro com o contrabaixista Miroslav Vitous. Ladislav, idealista indiano a tocar contrabaixo, apesar do nome sugerir outra coisa, neste momento ficou indiano, a tocar uns temas em quarteto, ele, o piano e a bateria. Era quarteto porque, de vez em quando, ele fazia uns vocalizos estranhos. Parece que o homem da gaita não tinha aparecido nesse dia.
            Ladislav, sou Ladislav, nasci em Bombaim numa noite de Inverno em que as portas se fechavam como medos por causa dos disparos. Por isso não me censuro quando as estrelas se alinham no Penedo do Lobo, porque a contracção do pensado com o real é acaso, puro e mero acaso, ordem rigorosamente determinada pelo acaso rigoroso.
            Não sei se me estão a ver de boné, a gola do casaco de fazenda levantada, o ar cinzento na face rosada de tinto, um bafo de baixas temperaturas perdido no nevoeiro.
            Ora aqui estamos nós numa ponte. Não é muito alta. Parece daquelas pontes sobre o Sena. O protagonista lança-se em perseguição de si mesmo, correndo pelas ruas mal iluminadas, após ter roubado as toalhas do hotel. Continua com o boné e o casaco cinzento.
            Sou Miroslav, Ladislav, o que quiserem, mas lavem-me a alma, que eu não quero ver fugir o vento. Já me quiseram impingir um espírito de sino, até me disseram que a vida tem cadência de badalo, mas não quis confundir a aldeia.

            Talvez seja por isso que bebo regularmente, como se cumprisse uma pena oculta, um castigo desconhecido de um crime imaginário. Provavelmente sou culpado. Culpado de sonhar, de ouvir minuetos de Beethoven e outras peças a três por quatro.
As Razões


            Perguntaram-lhe as razões do texto, mas quando intimam a razão, mesmo quando a desconhecem, hà sempre uma razão oculta pelas esquinas. São vários corredores existenciais, duplas saidas geométricas, geometricamente mutáveis, como se falou em poemas longínquos. Perguntaram-lhe a razão do poema crescendo no centeio, como se fosse possível encontrar a olho nu o fio condutor racional da arte.
            Voltaram de longe, de onde não se sabe voltar. Chegaram lentamente, várias sombras trilhavam ecos voláteis. Sombras, mobilidades, procuras cansadas. A enorme viagem cansada, por montes e vales, colhendo secas e velhas melodias.
            Falavam da noite, dos nocturnos acordes da noite, florestando imagens de um cataclismo. O jazz ibérico, metempsicose, um imbróglio de forças metafísicas, unidades de consciência.
            São espaços penumbra em nuvens cinzento, máscara em que deixaram cair os segredos um dia, quando o sol sumia no monte. Esqueceram-se de beber o oculto, o culto do oculto. São marcas de grandes nadas, escombros, uma contínua linha de pensamento rural encontrada nos diversos fragmentos de um segundo. Espectros véus na noite, meteorito errante de rota fixa que ninguém entende, ninguém lê.
            Sabem de sombras, cadáveres e outros saberes, sabem de buracos legais onde se escondem da justiça que habita os mesmos buracos. Procuram o triângulo esférico, nas horas vagas. Teimam em escrever diálogos neutros e encontram cidadania no mundo sem endereço, e a europa é uma asfixia satélite, órbita de enganos, desesperos. Sabem que vão desaparecer mais cedo ou mais tarde, querem rir de um estilhaço de obuz, noite alta com os lobisomens, querem inventar o nada magnífico.
            Já só cresce lama na valeta, choro perdido no correr do tempo, nevoeiro cerrado entre espinhos de sangue.
            Somos nome, nome de pedra afastada no caminho, nome de sonho de Verão perdido por entre sete caminhos, distância de muro, pedra outra vez.

            
bosque


            se o vissem nesse dia, diriam que podia ser um personagem medieval, caminhando alegre pelo bosque, a assobiar uma melodia campestre. parou frente a um velho castanheiro, cujo tronco parecia uma cabana em decomposição, e acendeu um charuto. entrou. por entre teias de aranha e dezenas de colónias de pequenos bichinhos foi andando. primeiro às voltas, e depois em frente. lá ao fundo não devia estar uma fada?

            a figura move-se pela vegetação. não procura nada, nenhuma direcção. move-se apenas. e conclui que, apesar de tudo, a única coisa que resta, a única coisa que importa, é ir.

            por entre a folhagem vária, a figura move-se. o seu movimento é circunspecto, atento à multiplicidade de sons circundantes, nem que fosse apenas para usar estas figuras gramaticais.

            crê conseguir pintar a realidade com palavras, mas será difícil. a realidade não se dilui nas sílabas, nem no significante. a realidade está no momento, apenas no momento.

            sabe, eu desenho formas muito estranhas. até já pensei tratar-me, mas não me consta que haja tratamento. desde que entrei naquele castanheiro que tenho tido uns sintomas muito estranhos. uns zumbidos, de vez em quando, um som muito agudo só num ouvido outras vezes, até parece que ondas cósmicas estão a comunicar, e, se calhar, até é. e, que diz o poeta?

            o poeta diz: eu sei das essências, mas ninguém me ouve. Baco dizia, nas horas vagas que eram poucas, que ninguém o ouvia, ninguém o levava a sério. a turba berrava por coisas que não sabia, e assim se faziam eleições, com a turba ébria de ignorância. a turba usa turbante, constata o poeta.

            naquele pátio, em cima de um escadote, o Quim tirava uma fotografia. vê-se, pela sombra no chão e na parede granítica da casa, que tem uma ramada e árvores. o poeta lê Nietzsche, Assim falava Zaratustra, o mesmo livro que o meu amigo leu ao gato aqui em Lisboa. no segundo quadro o poeta escreve no livro, anotações. que é feito deste exemplar? na terceira página tinha escrito: ópio com coca mais morfa. estranha composição, tal qual o alcool, o al-kuhul, ser um composto químico, que é o mesmo que dizer composto etéreo, nada.

            a figura move-se pela vegetação, confunde-se com ela, funde-se nela. o que importa é ir. insinuar-se na folhagem. a figura dilui-se na vegetação, ela é. e o que importa é ser. criar energia inútil para a inutilidade cósmica.

            e subiu o monte, e apanhou a chuva que lá em cima era já neve. não queria saber de dúvidas, nem de indecisões, apenas queria sair do cinzento. e foi assim que subiu o monte, e apanhou a chuva que era neve, e o granizo que era máquina, e o planeta que era febre. e pensou: eu sei das essências, mas ninguém me ouve. somos tão intragáveis que nem os vermes nos vão querer, mas havemos de ir por aí em naves, e vamos infectar o cosmos inteiro, se é que ele é inteiro.

            a figura move-se pela vegetação e diz: hoje é domingo e só se devia ouvir orgão de tubos, porque, no meu dialecto, domingo quer dizer orgão de tubos. o domingo é o dia em que o grande orgão faz vibrar os seus magníficos tubos, seja ele pâncreas, fígado ou intestinos.

            e passaram vários domingos, vários orgãos, vários tubos. e a figura continuou a mover-se pela vegetação, a brisa fazia-a ondular lentamente, um sopro sussurrante carregado de segredos milenares. e disse, nada será como dantes, os ossos manifestam-se. o vazio de ser participa da composição do ar. onde está o ar? perguntava, enquanto examinava os tubos da gaita de foles escocesa.


            a figura move-se na vegetação e usa uma escala de doze sons, por isso saltita alegremente de folhagem em folhagem, de ramagem em ramagem, de almimagem em almimagem, e diz: nada do que parece, é.

sábado, janeiro 23, 2016

A andar



            Bom, a principio, parecia ser apenas um solitário caminhar pelas ruas de Lisboa, mas a pouco e pouco foi sofrendo alterações. O envolvimento dos sons citadinos, a atmosfera estranha, feita de gases automobilísticos e outros, tudo isso foi sugerindo ideias. Era sempre assim, tudo começava por um simples sair à rua, mas pouco depois apareciam as ideias, pelo passeio, entre gente, muita gente.
            A altura dos prédios não permite que se veja bem o céu. Não é como lá em cima, onde o contacto visual com o tecto do mundo é permanente, tão permanente que nem é possível pensar que seja de outro modo. É preciso chegar aqui, à cidade, para ver que afinal há muito quem consiga viver uma vida sem ver o céu.
            Imaginar este mundo sem som, em silêncio. Aí está uma das ideias que aparecia com frequência. Depois havia aquela tendência para fotografar o rosto da gente que passa, um retrato interior, imediato, com uma hipótese lógica para, por exemplo, o argumento de um filme. E tudo começava por um simples sair à rua.
            Chegar pode ser adiar, ou descobrir que o tempo anda trocado, incluindo as massas de ar, a chuva e o sol. Não se vislumbra sequência qualquer no bom sentido. Se calhar é resultado de um pessimismo entranhado como o fumo, uma estranha saudade do abismo.
            São estes sons que lembram ausência de infinito. Tudo isto parece fazer parte de um argumento mal amanhado. Onde é que isto leva? Em que linhas se move aquilo que chamamos destino? Tudo isto faz lembrar um mundo de formigas, impaciente e cego.
            O passeio solitário transformou-se em progressão do quotidiano. Passaram muitos dias. Parece que passaram anos, séculos, tanto tempo que até dá pena ver como se perdeu.
            Mas o corpo ainda anda, por isso cá estamos e ainda por cima perdidos nos tempos verbais. Há ainda uma história de um telemóvel, imagine-se, que ficou à espera de uma mensagem dentro do porta-luvas e umas baladas pela madrugada.

            Entretanto, imagine-se, um outro telemóvel aparece no meio de tudo isto, e ainda uma carta, e uma vontade de largar tudo e deitar a correr pelo monte fora. Afinal ainda é possível escrever, mesmo com as costas doridas e o coração ausente, sempre ausente daquilo que escreve. Lisboa e a chuva. O trânsito do costume, a vaca preta, a semana habitual trespassada por uma sessão de cinema e um possível concerto de Kurtág, Webern e mais não sei quem. Afinal ainda é possível escrever, mesmo com as costas doridas e o coração ausente.
A vaca preta

            Talvez pareça bizarro, mas este meu amigo tinha o quarto dele ao contrário. Ele é costume, em algumas aldeias, ter a corte dos animais por baixo dos quartos, que assim vai passando o calor pelo soalho. Este meu amigo tinha tudo ao contrário, o seu quarto estava por baixo da corte, imagine-se.
            Cansado da canseira do quotidiano, em chegando a casa bebia para esquecer que estava cansado de nada, de realizar nada. Aproveitava então para ouvir o ritmo desordenado dos cascos da vaca preta. Esta vaca até era branca, mas tinha-se dado o caso de ter um caso com um bode preto, donde surgiu uma cabra preta que era parecida com a vaca.
            Os cascos iam e vinham a diferentes velocidades para trás e para diante lá em cima na corte. O meu amigo cismava no cansaço da canseira, em como seria bom ter aquilo insonorizado, como num estúdio de gravação. Ou então pôr um altifalante no tecto a emitir ultra e infra sons para fazer explodir o cérebro àqueles quadrúpedes.
            Pelas frinchas do soalho pingava bosta, por vezes. O meu amigo acordou uma vez a meio da noite aos beijos a um poio. Mas se calhar sonhou. O gado movimentava-se lá em cima. A vaca para trás e para diante, a cabra aos pulos de vez em quando, o bode a marcar a pulsação de um reggae. Era uma festa.       
            Na impossibilidade de uma qualquer solução o meu amigo foi-se adaptando àquele esfocinhar no chão, coisa  de que nunca percebeu bem a utilidade, era como se andasse constantemente uma cadeira a arrastar-se nas traves de  madeira. Havia uns grunhidos espaçados e estranhos enquanto a bosta passava lentamente pelas frestas. As paredes estavam castanhas e cinzentas e aquela humidade dava para fazer uma horta.

            Este meu amigo tinha o quarto ao contrário e tudo parecia indicar que assim continuasse, as batidas inconsequentes dos cascos, o esfocinhar misterioso no soalho, a dúvida persistente da origem daquele gado e a resignação a mais altos desígnios.
Exodo Rural


            Somos energia, com forma, talvez, mas essencialmente energia. Durante horas, em Arcossó, discutiu-se a hipótese de não sermos mais do que pontos de luz, parecidos com estrelas. E convém ouvir Ligeti, a Lux Aeterna, enquanto se pensa nisso.
            Estão três marcianos dentro de um ponto de luz. Cada um deles é, também, um ponto de luz e estão a analisar a conversa de três humanóides, que estão a pôr a hipótese de ser apenas três pontos de luz. São três pontos de energia que escutam três pontos de energia que põem, seriamente, a hipótese de ser apenas três pontos de energia. Uma valente ficha tripla.
            E lá vinha a nave, silenciosa, obedecendo a todos os sinais de trânsito. Lá vinha a nave, com o guitarrista, a bailarina, as três crianças e o Martinho, mais a guitarra, as malas dos livros e a roupa.
            Os marcianos estão perplexos. Mas que é isto? Alguém se interroga, seriamente, sobre as primeiras interrogações. Nada o faria prever.
            Ás vezes, é complicado programar uma boa rota de férias. Ele há gente com mais capacidade para isso. Confesso que esta não lembra facilmente.
            Temos um carro. Comercial. Dois lugares e rede. O condutor leva a guitarra, duas pastas carregadas de livros, mais a mala da roupa. A companheira tem a sua bagagem necessária, uma criança no ventre, mais outras três, que vão deitadas em cima dos sacos, mais a bagagem delas todas. Ainda falta o Martinho, cão corpulento e idoso que também tem que ir.
            “Tem que ir. Sem o Martinho não vou. Vamos de noite, que é para a polícia não nos multar”. E foram.


Bolero Midas


            Chamo-me Midas, Bolero Midas, mas não transformo em ouro tudo o que toco porque sou bastardo do antigo rei. Quando muito tudo o que toco fica em trampa. Ando pelas ruas com o olhar vago e indefinido, tal qual as intenções. A minha intencionalidade resume-se ao desejo de vir a possuir uma alma. Como se vê, contento-me com pouco. Apesar de não transformar tudo o que toco em ouro tenho sempre a sensação de que isso pode acontecer em qualquer momento, assim eu tivesse a alma que procuro.
            Por vezes confundem-me com bolero, mas pouco percebo disso, ou mesmo nada, que é o facto. Abundam em mim as persistências, abro dois e três buracos na parede com a cabeça. Não desisto assim facilmente e foi por isso que me propuz entrar nesta narrativa.
            Se pudesse voar era corvo para não ferir susceptibilidades e não passar despercebido. A única coisa que me ficou foi a vontade de não ser ignorado, poder cavar a minha tumba e receber um nome. Já existo assim mesmo, mas não sei pegar numa pá.
            Possuo uma coleção bizarra de rolos de papel higiénico de várias nacionalidades. Por vezes peço-os à cobrança pelo correio. É realmente espantoso como se torna possível conhecer mundo pelo papel higiénico, talvez melhor que pelos selos, uma vez que revela tendências mais intimas.
            Imagino o que seja voar, mas o meu lado humano esconde-se de tal façanha, que ele é mais seguro ter os pés em terra, a não ser que seja corvo em ponto de chaminé.
            Sou mais um espectro desta atmosfera surrealista e não me surpreendo em raciocínio de trincheira, mas aquela garrafa de bolso significa o regresso momentâneo ao balcão do Sam. Por vezes tenho espírito de tatuagem marinheira num balde, mas quando fumegam estrelas o seco solo da terra pronuncia meu nome em sussurro, como se isso fosse possível! Sou, na realidade, um estudo. Um estudo das diversas formas de encarar prismas de eloquência.

            Fui marinheiro, embora a liquidez dos meus pensamentos aquáticos tenha sido sempre terrena de raiz. Com certos encantos geométricos pressinto-me possuidor de alguns desígnios clássicos, apesar de isentos de máximos de consciência possível. Ainda se ouviam risos aritméticos no vale já eu pedregulhava nas margens deliciosas do rio.
Ao almoço

                       

            Pouco depois de entrar indicaram-lhes a mesa, entre grande confusão de pernas, gente, cadeiras, mais pernas movimentando-se, cotoveladas, pequenos encontrões. Já não se lembrava de quem lhe indicara aquele restaurante, mas, fosse quem fosse, tinha-lhe dito para não levar crianças. Passaram uns sujeitos com uns fardos de palha, para a cerveja e o whisky, disseram, e mais uns outros com umas panelas de lúpulo. De vez em quando corriam uns animais, coelhos, galinhas, bezerros, sempre perseguidos a alta velocidade por cozinheiros de facas e machados na mão. Vinham atrás uns tipos com uns alguidares, provavelmente para amparar o sangue. Foi aqui que começou a história do porco...
            Alguém se lembrou de pedir rojões. De repente apareceu um porco a fugir por entre as mesas, com o cozinheiro de grande facalhão atrás. Zás! Espetou-lhe certeiro entre a quarta e a quinta costela, mas parece que devia ter sido entre a sexta e a quinta. Vai daí o porco não tombou redondo à primeira, fugiu cheio de sangue. O tipo do alguidar ia fazendo pontaria inutilmente... “Porra, vê lá se acertas no gajo!” O cozinheiro espetou outra vez. O reco tombou redondo e o tipo do alguidar foi aviando o povo que tinha pedido sarrabulho. De qualquer modo devia ser sarrabulho instantâneo, porque aquilo não dava tempo para grandes preparos. Penduraram o porco, de cabeça para baixo, por pouco tempo, porque alguém pediu a cabeça, e de repente já era difícil dizer em que posição estava.

            A coisa ainda demorou, porque aviaram primeiro os clientes das febras e das costeletas, e depois os do pernil, e finalmente os dos rojões. Não se pense que isto foi um processo pacifico. Além de haver muita gente a reclamar, houve também quem se enojasse e se tenha vertido abundantemente pelas tripas superiores e inferiores. Andava sempre gente a correr de um lado para o outro com saquinhos de plástico, mas depressa apareceram com uns baldes porque não davam vazão. Havia também quem comesse desalmadamente, com as beiças escorridas de molho e baba, porque aquilo abria-lhes muito o apetite. Esta gente fazia questão de comer neste restaurante cuja especialidade eram os túbaros de qualquer quadrúpede desgraçado que ali aparecesse.