A vaca preta
Talvez
pareça bizarro, mas este meu amigo tinha o quarto dele ao contrário. Ele é
costume, em algumas aldeias, ter a corte dos animais por baixo dos quartos, que
assim vai passando o calor pelo soalho. Este meu amigo tinha tudo ao contrário,
o seu quarto estava por baixo da corte, imagine-se.
Cansado
da canseira do quotidiano, em chegando a casa bebia para esquecer que estava
cansado de nada, de realizar nada. Aproveitava então para ouvir o ritmo
desordenado dos cascos da vaca preta. Esta vaca até era branca, mas tinha-se
dado o caso de ter um caso com um bode preto, donde surgiu uma cabra preta que
era parecida com a vaca.
Os
cascos iam e vinham a diferentes velocidades para trás e para diante lá em cima
na corte. O meu amigo cismava no cansaço da canseira, em como seria bom ter
aquilo insonorizado, como num estúdio de gravação. Ou então pôr um altifalante
no tecto a emitir ultra e infra sons para fazer explodir o cérebro àqueles
quadrúpedes.
Pelas
frinchas do soalho pingava bosta, por vezes. O meu amigo acordou uma vez a meio
da noite aos beijos a um poio. Mas se calhar sonhou. O gado movimentava-se lá
em cima. A vaca para trás e para diante, a cabra aos pulos de vez em quando, o
bode a marcar a pulsação de um reggae. Era uma festa.
Na
impossibilidade de uma qualquer solução o meu amigo foi-se adaptando àquele
esfocinhar no chão, coisa de que nunca
percebeu bem a utilidade, era como se andasse constantemente uma cadeira a
arrastar-se nas traves de madeira. Havia
uns grunhidos espaçados e estranhos enquanto a bosta passava lentamente pelas
frestas. As paredes estavam castanhas e cinzentas e aquela humidade dava para
fazer uma horta.
Este
meu amigo tinha o quarto ao contrário e tudo parecia indicar que assim
continuasse, as batidas inconsequentes dos cascos, o esfocinhar misterioso no
soalho, a dúvida persistente da origem daquele gado e a resignação a mais altos
desígnios.
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