sábado, janeiro 23, 2016

A vaca preta

            Talvez pareça bizarro, mas este meu amigo tinha o quarto dele ao contrário. Ele é costume, em algumas aldeias, ter a corte dos animais por baixo dos quartos, que assim vai passando o calor pelo soalho. Este meu amigo tinha tudo ao contrário, o seu quarto estava por baixo da corte, imagine-se.
            Cansado da canseira do quotidiano, em chegando a casa bebia para esquecer que estava cansado de nada, de realizar nada. Aproveitava então para ouvir o ritmo desordenado dos cascos da vaca preta. Esta vaca até era branca, mas tinha-se dado o caso de ter um caso com um bode preto, donde surgiu uma cabra preta que era parecida com a vaca.
            Os cascos iam e vinham a diferentes velocidades para trás e para diante lá em cima na corte. O meu amigo cismava no cansaço da canseira, em como seria bom ter aquilo insonorizado, como num estúdio de gravação. Ou então pôr um altifalante no tecto a emitir ultra e infra sons para fazer explodir o cérebro àqueles quadrúpedes.
            Pelas frinchas do soalho pingava bosta, por vezes. O meu amigo acordou uma vez a meio da noite aos beijos a um poio. Mas se calhar sonhou. O gado movimentava-se lá em cima. A vaca para trás e para diante, a cabra aos pulos de vez em quando, o bode a marcar a pulsação de um reggae. Era uma festa.       
            Na impossibilidade de uma qualquer solução o meu amigo foi-se adaptando àquele esfocinhar no chão, coisa  de que nunca percebeu bem a utilidade, era como se andasse constantemente uma cadeira a arrastar-se nas traves de  madeira. Havia uns grunhidos espaçados e estranhos enquanto a bosta passava lentamente pelas frestas. As paredes estavam castanhas e cinzentas e aquela humidade dava para fazer uma horta.

            Este meu amigo tinha o quarto ao contrário e tudo parecia indicar que assim continuasse, as batidas inconsequentes dos cascos, o esfocinhar misterioso no soalho, a dúvida persistente da origem daquele gado e a resignação a mais altos desígnios.