sábado, janeiro 23, 2016

A andar



            Bom, a principio, parecia ser apenas um solitário caminhar pelas ruas de Lisboa, mas a pouco e pouco foi sofrendo alterações. O envolvimento dos sons citadinos, a atmosfera estranha, feita de gases automobilísticos e outros, tudo isso foi sugerindo ideias. Era sempre assim, tudo começava por um simples sair à rua, mas pouco depois apareciam as ideias, pelo passeio, entre gente, muita gente.
            A altura dos prédios não permite que se veja bem o céu. Não é como lá em cima, onde o contacto visual com o tecto do mundo é permanente, tão permanente que nem é possível pensar que seja de outro modo. É preciso chegar aqui, à cidade, para ver que afinal há muito quem consiga viver uma vida sem ver o céu.
            Imaginar este mundo sem som, em silêncio. Aí está uma das ideias que aparecia com frequência. Depois havia aquela tendência para fotografar o rosto da gente que passa, um retrato interior, imediato, com uma hipótese lógica para, por exemplo, o argumento de um filme. E tudo começava por um simples sair à rua.
            Chegar pode ser adiar, ou descobrir que o tempo anda trocado, incluindo as massas de ar, a chuva e o sol. Não se vislumbra sequência qualquer no bom sentido. Se calhar é resultado de um pessimismo entranhado como o fumo, uma estranha saudade do abismo.
            São estes sons que lembram ausência de infinito. Tudo isto parece fazer parte de um argumento mal amanhado. Onde é que isto leva? Em que linhas se move aquilo que chamamos destino? Tudo isto faz lembrar um mundo de formigas, impaciente e cego.
            O passeio solitário transformou-se em progressão do quotidiano. Passaram muitos dias. Parece que passaram anos, séculos, tanto tempo que até dá pena ver como se perdeu.
            Mas o corpo ainda anda, por isso cá estamos e ainda por cima perdidos nos tempos verbais. Há ainda uma história de um telemóvel, imagine-se, que ficou à espera de uma mensagem dentro do porta-luvas e umas baladas pela madrugada.

            Entretanto, imagine-se, um outro telemóvel aparece no meio de tudo isto, e ainda uma carta, e uma vontade de largar tudo e deitar a correr pelo monte fora. Afinal ainda é possível escrever, mesmo com as costas doridas e o coração ausente, sempre ausente daquilo que escreve. Lisboa e a chuva. O trânsito do costume, a vaca preta, a semana habitual trespassada por uma sessão de cinema e um possível concerto de Kurtág, Webern e mais não sei quem. Afinal ainda é possível escrever, mesmo com as costas doridas e o coração ausente.