A andar
Bom, a principio, parecia
ser apenas um solitário caminhar pelas ruas de Lisboa, mas a pouco e pouco foi
sofrendo alterações. O envolvimento dos sons citadinos, a atmosfera estranha,
feita de gases automobilísticos e outros, tudo isso foi sugerindo ideias. Era
sempre assim, tudo começava por um simples sair à rua, mas pouco depois
apareciam as ideias, pelo passeio, entre gente, muita gente.
A altura dos prédios não
permite que se veja bem o céu. Não é como lá em cima, onde o contacto visual
com o tecto do mundo é permanente, tão permanente que nem é possível pensar que
seja de outro modo. É preciso chegar aqui, à cidade, para ver que afinal há muito quem consiga viver uma vida sem ver o céu.
Imaginar este mundo sem
som, em silêncio. Aí está uma das ideias que aparecia com frequência. Depois
havia aquela tendência para fotografar o rosto da gente que passa, um retrato
interior, imediato, com uma hipótese lógica para, por exemplo, o argumento de
um filme. E tudo começava por um simples sair à rua.
Chegar pode ser adiar, ou
descobrir que o tempo anda trocado, incluindo as massas de ar, a chuva e o sol.
Não se vislumbra sequência qualquer no bom sentido. Se calhar é resultado de um
pessimismo entranhado como o fumo, uma estranha saudade do abismo.
São estes sons que lembram
ausência de infinito. Tudo isto parece fazer parte de um argumento mal
amanhado. Onde é que isto leva? Em que linhas se move aquilo que chamamos
destino? Tudo isto faz lembrar um mundo de formigas, impaciente e cego.
O passeio solitário
transformou-se em progressão do quotidiano. Passaram muitos dias. Parece que
passaram anos, séculos, tanto tempo que até dá pena ver como se perdeu.
Mas o corpo ainda anda,
por isso cá estamos e ainda por cima perdidos nos tempos verbais. Há ainda uma
história de um telemóvel, imagine-se, que ficou à espera de uma mensagem dentro
do porta-luvas e umas baladas pela madrugada.
Entretanto, imagine-se, um
outro telemóvel aparece no meio de tudo isto, e ainda uma carta, e uma vontade
de largar tudo e deitar a correr pelo monte fora. Afinal ainda é possível
escrever, mesmo com as costas doridas e o coração ausente, sempre ausente
daquilo que escreve. Lisboa e a chuva. O trânsito do costume, a vaca preta, a
semana habitual trespassada por uma sessão de cinema e um possível concerto de
Kurtág, Webern e mais não sei quem. Afinal ainda é possível escrever, mesmo com
as costas doridas e o coração ausente.
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