bosque
se o vissem nesse dia,
diriam que podia ser um personagem medieval, caminhando alegre pelo bosque, a
assobiar uma melodia campestre. parou frente a um velho castanheiro, cujo
tronco parecia uma cabana em decomposição, e acendeu um charuto. entrou. por
entre teias de aranha e dezenas de colónias de pequenos bichinhos foi andando.
primeiro às voltas, e depois em frente. lá ao fundo não devia estar uma fada?
a figura move-se pela
vegetação. não procura nada, nenhuma direcção. move-se apenas. e conclui que,
apesar de tudo, a única coisa que resta, a única coisa que importa, é ir.
por entre a folhagem
vária, a figura move-se. o seu movimento é circunspecto, atento à
multiplicidade de sons circundantes, nem que fosse apenas para usar estas
figuras gramaticais.
crê conseguir pintar a
realidade com palavras, mas será difícil. a realidade não se dilui nas sílabas,
nem no significante. a realidade está no momento, apenas no momento.
sabe, eu desenho formas
muito estranhas. até já pensei tratar-me, mas não me consta que haja
tratamento. desde que entrei naquele castanheiro que tenho tido uns sintomas
muito estranhos. uns zumbidos, de vez em quando, um som muito agudo só num
ouvido outras vezes, até parece que ondas cósmicas estão a comunicar, e, se calhar,
até é. e, que diz o poeta?
o poeta diz: eu sei das
essências, mas ninguém me ouve. Baco dizia, nas horas vagas que eram poucas,
que ninguém o ouvia, ninguém o levava a sério. a turba berrava por coisas que
não sabia, e assim se faziam eleições, com a turba ébria de ignorância. a turba
usa turbante, constata o poeta.
naquele pátio, em cima de
um escadote, o Quim tirava uma fotografia. vê-se, pela sombra no chão e na
parede granítica da casa, que tem uma ramada e árvores. o poeta lê Nietzsche,
Assim falava Zaratustra, o mesmo livro que o meu amigo leu ao gato aqui em
Lisboa. no segundo quadro o poeta escreve no livro, anotações. que é feito
deste exemplar? na terceira página tinha escrito: ópio com coca mais morfa.
estranha composição, tal qual o alcool, o al-kuhul, ser um composto químico,
que é o mesmo que dizer composto etéreo, nada.
a figura move-se pela
vegetação, confunde-se com ela, funde-se nela. o que importa é ir. insinuar-se
na folhagem. a figura dilui-se na vegetação, ela é. e o que importa é ser.
criar energia inútil para a inutilidade cósmica.
e subiu o monte, e apanhou
a chuva que lá em cima era já neve. não queria saber de dúvidas, nem de
indecisões, apenas queria sair do cinzento. e foi assim que subiu o monte, e
apanhou a chuva que era neve, e o granizo que era máquina, e o planeta que era
febre. e pensou: eu sei das essências, mas ninguém me ouve. somos tão
intragáveis que nem os vermes nos vão querer, mas havemos de ir por aí em
naves, e vamos infectar o cosmos inteiro, se é que ele é inteiro.
a figura move-se pela
vegetação e diz: hoje é domingo e só se devia ouvir orgão de tubos, porque, no
meu dialecto, domingo quer dizer orgão de tubos. o domingo é o dia em que o
grande orgão faz vibrar os seus magníficos tubos, seja ele pâncreas, fígado ou
intestinos.
e passaram vários
domingos, vários orgãos, vários tubos. e a figura continuou a mover-se pela
vegetação, a brisa fazia-a ondular lentamente, um sopro sussurrante carregado
de segredos milenares. e disse, nada será como dantes, os ossos manifestam-se.
o vazio de ser participa da composição do ar. onde está o ar? perguntava,
enquanto examinava os tubos da gaita de foles escocesa.
a figura move-se na
vegetação e usa uma escala de doze sons, por isso saltita alegremente de
folhagem em folhagem, de ramagem em ramagem, de almimagem em almimagem, e diz:
nada do que parece, é.
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