quinta-feira, janeiro 28, 2016

bosque


            se o vissem nesse dia, diriam que podia ser um personagem medieval, caminhando alegre pelo bosque, a assobiar uma melodia campestre. parou frente a um velho castanheiro, cujo tronco parecia uma cabana em decomposição, e acendeu um charuto. entrou. por entre teias de aranha e dezenas de colónias de pequenos bichinhos foi andando. primeiro às voltas, e depois em frente. lá ao fundo não devia estar uma fada?

            a figura move-se pela vegetação. não procura nada, nenhuma direcção. move-se apenas. e conclui que, apesar de tudo, a única coisa que resta, a única coisa que importa, é ir.

            por entre a folhagem vária, a figura move-se. o seu movimento é circunspecto, atento à multiplicidade de sons circundantes, nem que fosse apenas para usar estas figuras gramaticais.

            crê conseguir pintar a realidade com palavras, mas será difícil. a realidade não se dilui nas sílabas, nem no significante. a realidade está no momento, apenas no momento.

            sabe, eu desenho formas muito estranhas. até já pensei tratar-me, mas não me consta que haja tratamento. desde que entrei naquele castanheiro que tenho tido uns sintomas muito estranhos. uns zumbidos, de vez em quando, um som muito agudo só num ouvido outras vezes, até parece que ondas cósmicas estão a comunicar, e, se calhar, até é. e, que diz o poeta?

            o poeta diz: eu sei das essências, mas ninguém me ouve. Baco dizia, nas horas vagas que eram poucas, que ninguém o ouvia, ninguém o levava a sério. a turba berrava por coisas que não sabia, e assim se faziam eleições, com a turba ébria de ignorância. a turba usa turbante, constata o poeta.

            naquele pátio, em cima de um escadote, o Quim tirava uma fotografia. vê-se, pela sombra no chão e na parede granítica da casa, que tem uma ramada e árvores. o poeta lê Nietzsche, Assim falava Zaratustra, o mesmo livro que o meu amigo leu ao gato aqui em Lisboa. no segundo quadro o poeta escreve no livro, anotações. que é feito deste exemplar? na terceira página tinha escrito: ópio com coca mais morfa. estranha composição, tal qual o alcool, o al-kuhul, ser um composto químico, que é o mesmo que dizer composto etéreo, nada.

            a figura move-se pela vegetação, confunde-se com ela, funde-se nela. o que importa é ir. insinuar-se na folhagem. a figura dilui-se na vegetação, ela é. e o que importa é ser. criar energia inútil para a inutilidade cósmica.

            e subiu o monte, e apanhou a chuva que lá em cima era já neve. não queria saber de dúvidas, nem de indecisões, apenas queria sair do cinzento. e foi assim que subiu o monte, e apanhou a chuva que era neve, e o granizo que era máquina, e o planeta que era febre. e pensou: eu sei das essências, mas ninguém me ouve. somos tão intragáveis que nem os vermes nos vão querer, mas havemos de ir por aí em naves, e vamos infectar o cosmos inteiro, se é que ele é inteiro.

            a figura move-se pela vegetação e diz: hoje é domingo e só se devia ouvir orgão de tubos, porque, no meu dialecto, domingo quer dizer orgão de tubos. o domingo é o dia em que o grande orgão faz vibrar os seus magníficos tubos, seja ele pâncreas, fígado ou intestinos.

            e passaram vários domingos, vários orgãos, vários tubos. e a figura continuou a mover-se pela vegetação, a brisa fazia-a ondular lentamente, um sopro sussurrante carregado de segredos milenares. e disse, nada será como dantes, os ossos manifestam-se. o vazio de ser participa da composição do ar. onde está o ar? perguntava, enquanto examinava os tubos da gaita de foles escocesa.


            a figura move-se na vegetação e usa uma escala de doze sons, por isso saltita alegremente de folhagem em folhagem, de ramagem em ramagem, de almimagem em almimagem, e diz: nada do que parece, é.